Ivan Schmidt
Devemos quase tudo o que sabemos sobre o desenvolvimento da cultura ocidental ao incansável trabalho realizado por historiadores franceses, dentre os quais se destaca Jean Delumeau, nascido em Nantes em 1923 e, a partir de 1975, um dos mais queridos professores de história do Collège de France. A profundidade de suas pesquisas sobre o cristianismo o colocou, sem nenhum favor, entre os autores mais lidos e consultados sobre a matéria. Contudo, o campo de investigação desse mestre na acepção da palavra o levaria a enfrentar desafios historiográficos ainda pendentes de respostas que satisfizessem não apenas o anseio passageiro de simples curiosos, mas a necessidade profissional de antropólogos, sociólogos, professores e escritores, para citar algumas áreas interessadas.
A imensa trilha explorada por Delumeau resultou da advertência feita por Lucien Febvre, em 1948, quanto à falta de "história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria", que por assim dizer escancarou a porta para a disciplina logo chamada de "história das mentalidades". Trinta anos depois da direção apontada pelo fundador da escola dos Annales, Delumeau entregava à publicação a alentada História do medo no ocidente, que, em l978, saiu pela Librairie Arthème Fayard, para ser lançado agora pela Companhia de Bolso (SP), com tradução de Maria Lúcia Machado, no âmbito do Ano da França no Brasil. O leitor se depara ao longo das quase 700 páginas da obra sem precedentes com um painel revelador dos pesadelos mais íntimos da civilização ocidental entre os anos de 1300 e 1800.
Delumeau confirma um dos medos cotidianos convertidos a intervalos mais ou menos próximos, em episódios de pânico coletivo, "especialmente quando uma epidemia se abatia sobre uma cidade ou uma região". A população brasileira vivencia atualmente a pandemia da influenza A causada pelo vírus H1N1 (gripe suína), uma situação que se ainda não pode ser caracterizada como pânico, por um ângulo que desnuda a crueldade de muitos, tornou-se um veio ubérrimo para a disseminação de boatos, alguns deles tão primários quanto extravagantes. Foi o caso da "peste negra" que assolou a Europa durante quatro séculos (1348 a 1720), além de surtos epidêmicos de contágio altamente letais de tifo, varíola, gripe pulmonar e varíola. Segundo Delumeau, durante grande parte do século XIV e ao menos até o começo do século XVI, "a peste reapareceu quase a cada ano em um lugar ou outro da Europa Ocidental".
Assim, era natural que as populações entrassem em estado de medo e nervosismo em face da peste, um "mal enraizado, implacavelmente recorrente". Na Itália do século XVII, "a peste é então uma "praga' comparável às que atingiram o Egito. É ao mesmo tempo identificada como uma nuvem devoradora que chega do estrangeiro e que se desloca de país em país, da costa para o interior e de uma extremidade à outra de uma cidade, semeando a morte à sua passagem. É ainda descrita como um dos cavaleiros do Apocalipse, como um novo "dilúvio', como "um inimigo formidável' e, sobretudo como um incêndio frequentemente anunciado no céu pelo rastro de fogo de um cometa".
O historiador francês também descobriu que todas as crônicas da peste insistem, como nos tempos modernos, "na interrupção do comércio e do artesanato, no fechamento das lojas, até das igrejas, na suspensão de qualquer divertimento, no vazio das ruas e das praças, no silêncio dos campanários". Com inteira razão, depõe Delumeau que por antonomásia a peste é chamada de "o mal", pois não há sobre a terra nenhum outro que se possa comparar a ela. As palavras seguintes se amoldam com perfeição à situação instalada entre o povo brasileiro: "Desde que se acende num reino ou numa república esse fogo violento e impetuoso, veem-se os magistrados atordoados, as populações apavoradas, o governo político desarticulado". Felizmente, ainda não chegamos ao caos absoluto descrito por Delumeau, mas não temos razão para discordar quando ratifica "que os homens temem até o ar que respiram".
Deixemos, porém, o medo da peste e passemos ao "inacreditável medo do diabo", que se espalhou nas civilizações desde a alvorada do século XIV, com A divina comédia (Dante morreu em 1321) marcando "simbolicamente a passagem de uma época a outra e o momento a partir do qual a consciência religiosa da elite ocidental deixa por um longo período de resistir à convulsão do satanismo". Delumeau diz que essa obsessão logo se refletiu na iconografia por meio de alucinante conjunto de imagens infernais "e a ideia fixa das incontáveis armadilhas e tentações que o grande sedutor não cessa de inventar para perder os humanos". Não foi por acaso que Lutero, diz o historiador, deixou-se possuir "ao mesmo tempo pelo medo do diabo e pela certeza de que o cataclismo final estava então no horizonte", sendo acompanhado nesse presságio pela Alemanha protestante do século XIV e do começo do XVII.
Os tormentos de Santo Antão eram assim estendidos à Alemanha inteira, constatou, acrescentando que "nesse país, onde se desenvolve então a lenda de Fausto, os habitantes têm a convicção de que Lúcifer é rei. Sem dúvida não teriam eles experimentado tanto esse sentimento se o teatro e, sobretudo, a imprensa não houvessem difundido amplamente o medo e, ao mesmo tempo, o deleite mórbido do satanismo".
Num país como o Brasil, onde há algum tempo os homens andam de cabeça para baixo e os bichos falam e, no qual o Senado é presidido por José Sarney, acolitado por Renan Calheiros, Fernando Collor, Romero Jucá, Epitácio Cafeteira, Wellington Salgado e Paulo Duque, ainda não apareceu abominação maior para causar tamanho espanto.
Ivan Schmidt é jornalista.
A opinião deve ser a expressão da máxima liberdade, caso contrário somente será reflexo de castração e de censura. Nosso blog visa, sem nenhuma espécie de censura ou patrulhamento, divulgar notícias e reflexões sobre o momento atual, além de pedir incessantemente justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura militar em nosso país e lutar contra as impunidades.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
A História do medo no Ocidente - Jean Delumeau
Pesadelos civilizados
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário