quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ditadura, Anistia e a cara de pau do Cabo Anselmo

Lei da Anistia racha governo e chega ao STF

RUBENS VALENTE
PEDRO DIAS LEITE
ANA FLOR, da Folha de S.Paulo


Trinta anos depois de sancionada pelo general João Baptista Figueiredo (1979-1985), o último presidente da ditadura, a Lei da Anistia, que possibilitou a volta dos exilados, é hoje o pivô de um racha no governo.


O debate jurídico gerado por investigações abertas pelo Ministério Público Federal para punir torturadores levou setores do governo a defender uma nova interpretação da lei, pela qual seria possível levar a julgamento militares e agentes do Estado que praticaram torturas e assassinatos na ditadura.


A discussão está agora no colo do STF (Supremo Tribunal Federal). Em outubro passado, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ingressou no tribunal com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo que o STF declare claramente que a anistia concedida pela lei 6.683 "não se estende a crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar."


O ministro relator do caso, Eros Grau, mandou ouvir os órgãos envolvidos. Em pareceres, apoiaram a OAB o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos e a Casa Civil. Contrários estão a AGU (Advocacia Geral da União), o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores.
"É uma falsidade dizer que punir torturadores é um ataque contra as Forças Armadas. Pelo contrário, arguir isso é que é usar o prestígio das Forças Armadas para defender torturadores", disse à Folha o ministro da Justiça, Tarso Genro.


O ministro da Defesa, Nelson Jobim, que comanda os militares, afirma que a anistia, para todos, não pode ser revogada. "Se você inventasse de revogar a Lei da Anistia, a revogação não teria efeito retroativo. O anistiado está anistiado."

Torturadores


A história da lei está resumida no processo de nove volumes que acompanha o projeto de lei 14/79, hoje no Arquivo do Senado. A lei foi aprovada pelo Congresso, numa sessão conjunta tumultuada, no dia 22 de agosto de 1979, e assinada por Figueiredo seis dias depois.

O processo revela que a necessidade de prever punição aos torturadores já surgiu no dia da votação, ainda que lateralmente, em discursos de parlamentares do MDB, como Airton Soares (MDB-SP) e Walter Silva (MDB-RJ). As maiores críticas do MDB, porém, giravam em torno de a lei não libertar imediatamente os presos políticos (alguns ficaram na cadeia até dezembro) e da falta de garantias para o retorno dos servidores públicos atingidos pelos atos institucionais e medidas persecutórias baixadas pela ditadura entre 1964 e 1969.


Em minoria no Congresso, o MDB cedeu à Arena, que apoiava o regime militar. O próprio substitutivo da oposição, também rejeitado, não previa punição aos torturadores. O MDB queria aprovar o que achava possível no momento.


O senador pelo MDB de Alagoas Teotônio Vilela (1917-1983), que percorrera presídios e recebera 43 manifestações de entidades representativas de advogados, jornalistas e artistas, criticou o projeto do governo, mas encerrou seu discurso em tom conciliatório: "Se houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância profunda da anistia está em reconciliar a nação."


O maior protesto pelas punições dos torturadores vinha de fora do Congresso, dos que tinham sofrido as violências do regime. Quando a lei foi aprovada, havia 53 presos políticos em presídios de sete Estados, a maior parte em greve de fome. O protesto durou 33 dias. Eles enviaram uma carta a Teotônio, que listou nomes ou apelidos de 251 militares e carcereiros envolvidos em torturas contra presos políticos (dos quais 80 "nos torturaram diretamente") e 27 "centros de torturas" espalhados pelo país.


Um dos autores da carta foi Gilney Viana, preso em 1970 e libertado em dezembro de 1979. Ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), Viana assaltou bancos e uma drogaria no interior de Minas Gerais. Disse ter sido torturado, com pancadas, choques elétricos por todo o corpo e pau-de-arara, durante 36 dias seguidos no 1º Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro. Viana sabe o nome do oficial que comandou as torturas e quer que o STF decida que ele pode ser punido. Ele diz que os ex-presos políticos "estão se articulando" para cobrar o STF.


"O chefe da tortura foi um capitão do Exército. Está vivo e aí, todo flozô [boa vida]. Foi visto em Brasília, almoçando. Este era um torturador que já tinha torturado em Minas e o deslocaram para o DOI-CODI do Rio. Ele vai a juízo, vai ser denunciado por crime de tortura. Eu o estou acusando de tortura. Ele tem que responder a esse processo na Justiça como eu respondi ao meu processo", disse Viana, que nos anos 90 foi deputado federal pelo PT-MT.


O ex-senador da Arena Murilo Badaró (MG), 77, líder do governo Figueiredo no dia da votação, atacou a rediscussão da lei: "É ação de gente desocupada. Como não tem ação política nem voto nem prestígio, fica criando matéria de jornal para poder ficar no foco do noticiário. É impossível reabrir esse assunto depois de tantos anos de uma espécie de anistia recíproca. Acho que é um assunto impertinente, desnecessário e sobretudo aumenta as dificuldades do Brasil numa hora tão difícil, de degradação política."


A Lei da Anistia poderá ser discutida em outra frente judicial, esta internacional: o Estado brasileiro é réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos em um processo sobre a guerrilha do Araguaia.



Lei de Anistia completa 30 anos, divide opiniões e é questionada na Justiça

da Folha Online

Ainda polêmica, a Lei de Anistia completa 30 anos na próxima sexta-feira. A medida é questionada judicialmente e alvo de opiniões divergentes que a classificam entre um marco definitivo para o fim da ditadura no Brasil e uma lei feita sob medida para proteger os torturadores.

O movimento que levou ao projeto e à sanção da Lei de Anistia começou logo após a instituição do regime militar, em 1964. No início, apenas intelectuais e lideranças políticas que tiveram seus direitos cassados faziam parte do movimento. Depois, a proposta ganhou a sociedade conforme aumentava a repressão por parte da ditadura.

No final da década de 70, sob forte pressão popular e já em processo de liberalização, o então presidente general João Baptista Figueiredo encaminhou o projeto de lei ao Congresso, que o aprovou. A lei foi sancionada no dia 28 de agosto de 1979.

No entanto, a lei tida por alguns setores como "ampla, geral e irrestrita" recebeu várias críticas dos movimentos sociais que lutavam pela redemocratização do país e hoje é considerada por pesquisadores como uma lei feita para atender aos interesses do regime militar.

Entre os pontos mais criticados da lei estão a exclusão de pessoas condenadas por crimes como terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal e a não previsão de pagamento de indenizações às vítimas do regime.

Algumas dessas reivindicações foram atendidas em leis posteriores, como a 9.140, conhecida como Lei dos Desaparecidos, aprovada em dezembro de 1995, que determinou o fornecimento de atestados de óbitos a desaparecidos políticos.

A reparação econômica, no entanto, só foi garantida mais de 20 anos depois da Lei de Anistia, com a aprovação da Lei 10.559, em 2002.

Atualmente, a lei é questionada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no STF (Supremo Tribunal Federal). Trinta anos depois, o STF deverá decidir, ao analisar a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), se a lei anistiou ou não responsáveis por crimes de tortura, sequestro e homicídio.

Antecedentes

De acordo com o estudo feito pela pesquisadora Glenda Mezarobba para sua dissertação de mestrado na USP (Universidade de São Paulo), o regime autoritário, instalado em 1964, vivia no final da década de 70, após uma fase bastante repressora, um período de lenta abertura.

A autora cita a análise de vários autores, entre eles os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, segundo os quais os verdadeiros objetivos da mudança era atingir a normalização institucional, ou seja, liberalizar o regime não para superar a ordem autoritária, mas sim para institucionalizá-la.

No entanto, quanto mais o processo de liberalização progredia, aumentava a força das manifestações populares que pediam a anistia e a volta da democracia.

Aos poucos, as denúncias de casos de abuso dos direitos humanos, abafadas no início do período ditatorial, foram tomando a sociedade. Denúncias de assassinatos, como o caso do jornalista Vladimir Herzog, reforçam a luta por respeito aos direitos humanos, democracia e anistia aos perseguidos políticos.

Segundo Glenda, o ano de 1977 foi marcado por manifestações estudantis em protesto contra prisões e tortura de presos políticos, que se transformaram também em manifestações pela anistia, como os "Dias Nacionais de Protesto e Luta pela Anistia" e "Comitês Primeiro de Maio pela Anistia".

Em 1978, com a fundação no Rio de Janeiro do CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia), a discussão se ampliou. A participação de entidades como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) intensificou o debate. Greves de fome de presos políticos, noites de vigília e atos públicos foram realizadas em várias capitais do país.

Cabo Anselmo reaparece em São Paulo e quer anistia
LUCAS FERRAZ
da Folha de S.Paulo


Um dos personagens mais controversos e polêmicos da história recente do país, cabo Anselmo deu ontem o último passo para voltar a ser José Anselmo dos Santos, nome de batismo do ex-marujo que precipitou a queda do governo João Goulart e marcou o início da ditadura militar (1964-85).

Vivendo clandestino e sem documentos oficiais há 45 anos, quando foi preso e expulso da Marinha, Anselmo fez na 8ª Vara da Justiça Federal de SP exame para comparar suas impressões digitais com as que constam em documentos disponibilizados pela Força.

Este é o último passo do processo em que a União foi forçada, em dezembro, a apresentar dados que durante anos foram considerados desconhecidos. A Marinha disponibilizou ficha "individual datiloscópica" e um "prontuário de identificação".

A cópia de sua certidão de nascimento não foi encontrada nos arquivos da corporação nem no cartório de Itaporanga d'Ajuda, no interior de Sergipe, onde ele nasceu e foi registrado --por isso a perícia.

Em pouco mais de 40 minutos, Anselmo tirou suas impressões digitais. A conclusão --que vai dizer se a pessoa que fez a perícia é o cabo Anselmo-- vai ser apresentada em 30 dias. Só depois ele poderá retirar novamente carteira de identidade, CPF e título de eleitor, e passará a ser o último dos beneficiados pela Lei de Anistia. "Até que enfim", comemorou Anselmo. Para ele, ontem foi uma nova data de nascimento. "O pedido [para reaver os documentos] era para sair em 15 dias. Foram quase sete meses de espera."

Anselmo diz passar por dificuldades financeiras e está debilitado fisicamente. Aos 67 anos, anda com dificuldade, reclama de constantes dores no estômago e está prestes a ser operado por causa de uma hérnia duodenal.

Após reaver os documentos, o que ele mais espera é ter julgado o pedido de reparação protocolado na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 2004, apesar de esperar pouco. Paulo Abrão, presidente da comissão, diz esperar a liberação dos documentos para o processo entrar em pauta.

"Estou tomando porrada há muito tempo", reclamou à Folha. "Esse pessoal da esquerda ainda inventa muita mentira", diz. "Há muita resistência no governo. Estão me enrolando já faz um bom tempo."

Líder da revolta dos marinheiros em 64, Anselmo atuou em várias organizações da esquerda armada, que ele próprio ajudou a destruir depois como informante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo. Era protegido do delegado Sérgio Fleury, um dos nomes mais associados à tortura e morte no período. O ex-marujo saiu de cena em 73.

"Ainda estou assustado, amedrontado, assombrado e tremendamente pressionado", afirmou cabo Anselmo, que deixou o prédio da Justiça Federal acompanhado por um ex-investigador do Dops, seu amigo Carlos Alberto Augusto.



Tarso diz que concessão de anistia a Cabo Anselmo é questionável
LUCAS FERRAZ
da Folha de S.Paulo, em Brasília


O ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou ontem ter dúvidas sobre a real perseguição sofrida por José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, na ditadura (1964-1985). Para ele, há indícios de que o ex-marinheiro já era, à época da rebelião que precipitou a queda do governo João Goulart, "agente infiltrado dos golpistas".

À Folha, contudo, o ministro disse que falava em tese por desconhecer o processo protocolado na Comissão de Anistia do órgão em que Anselmo pede anistia e reparação econômica pela perseguição que diz ter sofrido.

"Não cabe a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que deliberadamente atuaram como agente do Estado, seja para desestabilizar um regime legal, como era o governo João Goulart, seja depois, numa estrutura paralela", afirmou Tarso.

Líder da rebelião dos marinheiros que levou ao golpe em 64, Anselmo militou em organizações de esquerda antes de virar informante da repressão. Sua parceria com a ditadura colaborou com a captura e morte de muitos militantes -inclusive sua companheira grávida. Após 45 anos, ele tenta reaver seus documentos originais.

Para Tarso, se for negada a anistia e o pedido de reparação a Anselmo, caberá a ele entrar com "ação ordinária" contra a União solicitando indenização, já que ele trabalhou no aparato extraoficial do regime e "não teve do Estado o reconhecimento pela prestação desse regime".

Dizendo-se perseguido ainda hoje, ele acusa o governo Lula de segurar seu processo. "Ele pode ficar absolutamente tranquilo que o caso será julgado com total isenção ideológica e a partir de provas", rebateu Tarso.

O Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão diz que pretende julgar o caso ainda neste ano --falta juntar os novos documentos do ex-marujo ao processo.

Último exilado da ditadura volta ao Brasil depois de 40 anos

Último exilado da ditadura volta ao Brasil depois de 40 anos
da Agência Brasil da Folha Online

O ex-marinheiro Antônio Geraldo da Costa, último exilado da ditadura militar retornou nesta terça-feira ao Brasil após 40 anos fora do país. Conhecido por "Neguinho" ou pelo codinome da militância, "Tigre", desembarcou no aeroporto às 16h, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Ele foi recebido por antigos companheiros de luta e de exílio.



Fernando Donasci/Folha Imagem

Neguinho deixou o país em 1970 após viver seis anos na clandestinidade

"Aqui estamos porque lá estivemos, na luta contra a ditadura, por um país livre e democrático", afirmou. "Faria tudo de novo, agora com mais experiência", disse.
Hoje com 75 anos, Neguinho deixou o país em 1970, após viver seis anos na clandestinidade depois do golpe militar. Nesse período, Neguinho chegou a participar de assaltos a banco no Rio e em São Paulo para financiar a luta armada contra a ditadura. Apesar de ter tido os crimes políticos anistiados por lei em 1979, o ex-marinheiro continuou em exílio voluntário na Suécia, com medo de retornar e ser punido pelos atos que praticou. Fragilizado emocionalmente, ele temia ser preso ao passar pela imigração.
Neguinho foi saudado pelo grupo "Amigos de 68" e festejado no aeroporto como "o último exilado brasileiro", que preferiu ficar no exterior após a anistia política de agosto de 1979. Ele vivia desde 1972 na Suécia, sob a identidade de Carlos Juarez de Melo, com a qual obteve nova cidadania, casou-se, teve dois filhos e trabalhou como cozinheiro para frades e auxiliar num asilo de velhos.
Por mais de três décadas, viveu sob a falsa identidade que o inibiu de retornar ao Brasil. O velho marinheiro imaginava que, mesmo depois da anistia poderia ser preso pelos assaltos a bancos e, ao mesmo, tempo temia que as autoridades suecas o extraditassem, caso revelasse o nome verdadeiro.

Fonte: Folha de São Paulo
da Agência Brasil
da Folha Online

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