Legado rebelde de 68
Elias Fajardo
Quase 40 anos depois, porque alguém ainda escreveria sobre as revoltas de 1968? Diante do livro 1968 O ano que abalou o mundo (e da própria realidade), esta dúvida se dissipa. Na verdade, 1968 é aqui e agora e os motins nos subúrbios parisienses, que se espalham como as chamas dos carros queimados pelos imigrantes pobres, chamados de 'escória' pelo ministro do Interior francês, mostram que onde há fumaça há fogo. E os estudantes latino-americanos protestando contra a visita de George W. Bush ao continente também indicam que o ano, como disse Zuenir Ventura, não vai mesmo terminar.
Em 1968 tudo começou na França porque os universitários de Nanterre queriam dormitórios mistos para moças e rapazes; em 2005, perseguidos pela polícia, dois africanos esconderam-se numa estação de energia e morreram eletrocutados. Os jovens da periferia parisiense transformaram em manifestações a sua revolta.
Os motivos iniciais são diversos e os tempos também. Não se pode dizer que o mundo vai explodir de novo exigindo a proibição das proibições, conseguindo juntar no mesmo saco radicais, feministas, gays, artistas, professores.
Hoje o buraco é mais embaixo - o século XXI convive com egoísmo generalizado, ceticismo, informação em demasia e algumas esperanças, mas quase tudo o que agora vivemos tem a ver com o que ocorreu em 1968.
Ápice da ideologia do 'sou contra'
O jornalista americano Mark Kurlansky defende a idéia de que em 68 os manifestantes tinham em comum apenas seu desejo de se rebelar, 'suas idéias de como fazer isso, uma sensação de alienação da ordem estabelecida e um profundo desagrado pelo autoritarismo'. Onde havia comunismo, abaixo o comunismo, onde havia capitalismo, idem e assim por diante. Hoje, as pessoas quase sempre estão dispostas a aceitar qualquer 'ismo', desde que lhes garanta o emprego, coisa que, na época, parecia impensável, pois um emprego estabelecido era o que de mais careta (e portanto rejeitável) podia existir para um jovem.
Robert Kennedy, citado no livro, disse que 'cada vez que um homem protesta contra a injustiça, transmite uma minúscula onda de esperança e, cruzando-se com outras vindas de um milhão de centros de energia e ousadia, essas ondas formam uma corrente que pode derrubar as mais poderosas muralhas da opressão e da resistência'.
Bob não é um revolucionário exemplar, mas o que ele diz tem a ver com a necessidade de transformar o mundo, a grande utopia levantada pelos acontecimentos de 68.
Os jovens de então (e alguns rebeldes não tão jovens, como o filósofo Marcuse, que até costumava rir do slogan 'o poder da flor') queriam mudar tudo e acabaram mudando a si mesmos. E acrescentando fatos, ritos, lições e perspectivas a uma enorme corrente, vinda de tempos imemoriais, que faz com que as estruturas se modifiquem, apesar dos obstáculos colocados diante delas.
Um dos personagens principais do livro é a guerra do Vietnã, na qual morriam por ano mais de dez mil soldados (números bem maiores do que os atuais mortos na Guerra do Iraque). Ela provocou o protesto dos jovens que não queriam alistar-se, de intelectuais e artistas e de todos os que percebiam que os Estados Unidos tinham se metido num beco sem saída, no qual a nação mais poderosa do mundo acabou derrotada por vietcongues magros com precário equipamento bélico. O comandante vietnamita Ho Chi Min contava com suas forças armadas e com 'as pessoas progressistas, nos EUA, que calorosamente apoiaram nossa luta'. O movimento americano contra a guerra usou não só as táticas não-violentas do reverendo Martin Luther King como a luta aberta com paus, pedras, coquetéis molotov. E inventou formas mais sutis, como o sit in , em que milhares de pessoas simplesmente se sentavam no meio da rua ou na entrada dos prédios públicos. Ou até o 'fumo de protesto', em que os manifestantes iam para a Tompkins Square Park,
Paris, mas também Havana e Saigon
A arma mais poderosa foi a mídia. 'Somos um moderno grupo revolucionário', dizia o ativista americano Abbie Hoffman, 'dirigido para a estação de TV, não para a fábrica'. Pela primeira vez, um conflito mundial era transmitido ao vivo e as imagens violentas, ainda não encaradas como algo banal, provocavam indignação crescente. Os líderes sabiam disto e passaram a usar a TV como aliada. Sabiam também que cada excesso do outro lado podia ser capitalizado. Quando Ronald Reagan se tornou governador da Califórnia, além de cortar as verbas para saúde e educação, iniciou uma política de brutalizar manifestantes. Assim, jovens brancos começaram a ser tratados pela polícia da maneira brutal com que os negros vinham sendo tratados há séculos. Isto aumentou a revolta, que se espalhou pelo mundo, e incluiu não só aspectos diretamente políticos, mas também sexo, drogas e rock n'roll.
Allen Ginsberg, o poeta judeu budista, viajava pregando sua revolução lisérgica - fumou maconha na frente do venerável Ezra Pound, em Roma e, na URSS, ao pregar o homossexualismo e as drogas, deixou perplexo o jovem rebelde Yevtushenko.
Tendo como ponto de partida uma pesquisa de qualidade, enfocando principalmente os EUA, mas dedicando-se também a Europa, Cuba, África e Europeu Oriental, Kurlansky valoriza as histórias, os 'causos' de correspondentes de guerra, ativistas, políticos, artistas. E o faz não para endeusar lideranças, mas para humanizar seu relato, tornando mais próxima e compreensível uma época tão louca.
Ele explora também as contradições que os movimentos provocaram. Na Polônia, por exemplo, os estudantes xingavam de fascistas as tropas de choque compostas por operários, aos quais fora dito que os manifestantes eram garotos privilegiados, que moravam nos melhores apartamentos e viajavam para Paris, o que, de certa forma, era verdade. E, no Brasil, os estudantes de classe média gritavam para os operários - 'Não fique aí parado, você é explorado'. Em ambos os casos, seus interlocutores não lhes deram ouvidos.
No livro '1968 - O ano que abalou o mundo', o pesquisador Mark Kurlansky revive detalhadamente toda a história política e cultural desses doze meses cruciais para a sociedade contemporânea. Foi uma época de mudanças extremas, onde tudo - música, política, cinema, comportamento, economia, imprensa - foi posto abaixo para ser reconstruído de maneiras absolutamente novas. Da invasão da Checoslováquia à queda de Nixon, Kurlansky analisa o dia-a-dia desse ano fervilhante e turbulento através de uma perspectiva global e um texto atraente. Dando a entender que seria um ano bem ordenado, 1968 começou numa segunda-feira. O Papa Paulo VI declarou que aquele 1º de janeiro seria um dia de paz, motivando uma trégua na Guerra do Vietnã. Ao mesmo tempo, a manchete da primeira página do jornal The New York Times dizia - "O mundo dá adeus a um ano violento". Tudo isso, no entanto, não passava de um alarme falso. A verdade é que nunca houve ano mais atribulado do que 1968; a guerra tornou-se mais terrível do que nunca, Martin Luther King e Robert Kennedy foram assassinados, a Convenção Nacional Democrata de Chicago resultou em tumultos generalizados, o Festival de Cannes e a Bienal de Veneza foram fechados, a União Soviética começou a ruir, o concurso de Miss América foi interrompido por manifestações feministas. O que mais impressiona durante a leitura de '1968 - O ano que abalou o mundo' é o fato de, num planeta ainda distante daquilo que ficou conhecido como "globalização", ter ocorrido o que o autor considera uma "combustão espontânea de espíritos rebeldes no mundo inteiro"; habitantes dos mais diversos lugares se rebelaram em torno de diferentes questões, tendo como objetivo comum a necessidade de derrubar a ordem estabelecida. Nada foi planejado ou organizado; simplesmente aconteceu.
Correio da Bahia / Data:27/11/2005
A década que mudou o mundo
Cinco publicações abordam os explosivos anos 60 no Brasil e no exterior - Paulo Sales
`1968 - O ano que abalou o mundo´, de Mark Kurlansky, enfoca um período de manifestações ruidosas de ideologias opostas, como as que aconteceram em Paris.
O mundo pegou fogo no final dos anos 60. Ideologias diametralmente opostas digladiavam entre si, provocando embates teóricos e corporais com alto poder de combustão. Costumes seculares eram subvertidos por uma nova ordem comportamental, levando filhos a repelir o legado dos pais. Na França, barricadas no Quartier Latin opunham estudantes e policiais, num episódio que entrou para a história com a alcunha de Maio 68. Nos EUA, a juventude e a opinião pública começavam a se chocar com as mortes (e os excessos bélicos) dos seus soldados na Guerra do Vietnã. No Brasil, a ditadura militar recrudescia com a promulgação do Ato Institucional nº 5, que legitimou a brutalidade fardada e sua predileção por investigações à base de choques elétricos, paus-de-arara e suicídios forjados.
Passados quase 40 anos, com parte da poeira já devidamente assentada, o período é reconstituído em quatro livros e uma revista recém-colocados nas livrarias, a maioria abordando o caos brasileiro ocultado sob a égide da Ordem e do Progresso. São eles: Memórias do esquecimento, de Flávio Tavares, Quando alegre partiste, de Moacir Japiassu, Náufrago da utopia, de Celso Lungaretti, e a nova edição da revista Leituras Contemporâneas, com o título Os dias mal-ditos - 40 anos de um golpe militar no Brasil.
Mas o principal lançamento praticamente não cita os conflitos ambientados no Brasil. 1968 - O ano que abalou o mundo, do jornalista norte-americano Mark Kurlansky, transporta o leitor para um período singular da história contemporânea. Num momento
Mas 1968 não se limita à França. Ele reconstitui episódios fundamentais do ano que não terminou, como diria Zuenir Ventura. Incluindo os assassinatos do ativista negro Martin Luther King e do senador democrata Robert Kennedy nos EUA, a Primavera de Praga promovida na Tchecoslováquia pelo presidente Alexander Dubcek e as rebeliões que brotaram quase simultaneamente em lugares como Roma, Berlim, Varsóvia, Tóquio e Cidade do México. O autor contrapõe a esses fatos políticos os movimentos culturais e artísticos, que também passavam por um período de efervescência: a psicodelia hippie, o auge dos Beatles e o teatro de vanguarda, entre outros.
Anos de chumbo - O que mais chama a atenção nos livros sobre a ditadura militar no Brasil é a existência de um olhar de quem realmente esteve no olho do furacão durante os anos de chumbo. Colunista político do jornal Última hora, Flávio Tavares foi preso e torturado pela polícia política em 1968. Ele foi um dos 15 prisioneiros libertados em troca do embaixador norte-americano Charles Elbrick, seqüestrado pelo grupo de guerrilheiros que tinha o hoje deputado federal Fernando Gabeira entre seus integrantes. Vencedor do Prêmio Jabuti em 2000, Memórias do esquecimento (agora relançado em edição revista e ampliada) relembra os momentos dramáticos vividos por Flávio e o grupo de ativistas do qual fez parte.
Celso Lungaretti também exorciza suas reminiscências do inferno em Náufrago da utopia. Dirigente de uma organização guerrilheira durante a ditadura, ele tinha apenas 18 anos quando foi preso e violentamente torturado. Ficou marcado por mais de 30 anos como delator, por ter teoricamente dedurado seus companheiros. Mais do que um acerto de contas com o próprio passado, o livro é um importante documento sobre os temerários recrutamentos de estudantes secundaristas por movimentos de luta armada. Quando, após um treinamento incipiente, eram jogados aos leões. Muitos morreram nos combates, outros ficaram com seqüelas físicas e psicológicas.
Mesmo sem ter se embrenhado tão profundamente nas profundezas dos porões militares, o escritor paraibano Moacir Japiassu viveu intensamente o período em sua atuação como jornalista - numa época em que ser jornalista era flertar com o perigo. Em Quando alegre partiste ele recorre à ficção para falar da realidade dos profissionais de imprensa envolvidos, em maior ou menor medida, com o combate à ditadura e a divulgação de suas atrocidades. Publicação da Asbec em parceria com as Faculdades Jorge Amado, a revista Leituras Contemporâneas reúne em seu segundo volume diversos ensaios sobre diferentes aspectos da ditadura militar. Os dias malditos -40 anos de um golpe militar no Brasil é fruto de um simpósio realizado entre os dias 30 de março e 10 de abril de 2004.
Todas essas publicações têm o mérito inquestionável de contribuir, de diferentes formas, para a compreensão de um período sombrio da nossa história. E, no caso de 1968 - O ano que abalou o mundo, de um período que fez o planeta mudar mais do que em toda a década anterior.
Preço = R$ 61,00
1968 - O ANO QUE ABALOU O MUNDO
Tradutor: COUTINHO, SONIA
Autor: KURLANSKY, MARK
Editora: JOSE OLYMPIO
Assunto: HISTORIA GERAL
Jornal do Brasil / Data: 26/11/2005
O ano que ousou dizer não ao não
Livro sobre 68 presta serviço às gerações que não participaram ou não foram contemporâneas desse tempo especial - Bruno Liberati
O que esperar de um sujeito que escreveu a História do bacalhau? Uma versão no mínimo palatável dos acontecimentos, quaisquer que sejam eles. Isso, o jornalista Mark Kurlansky faz muito bem em seu livro 1968 O ano que abalou o mundo. A primeira leitura pode levar à suspeita de que ele escreveu visando o público americano. Porém, essa impressão diminui, diante da imensidão de fatos que aborda. E, justiça seja feita, Kurlansky não ficou apenas nas cercanias do seu umbigo. Ao reconstruir com maestria o complexo painel dessa época turbulenta, prestou um serviço às gerações que não participaram ou não foram contemporâneas dos eventos que tornaram esse ano especialíssimo: marco de ruptura com um mundo que parece pertencer a uma outra galáxia.
O autor fez um retrato bem documentado dos 12 meses que assistiram a uma multiplicidade de eventos que abalaram quase que simultaneamente países díspares como EUA, Alemanha, a então Checoslovaquia, Polônia, México, Japão, Canadá, Egito, Espanha, Israel, Itália, China, Vietnã, Nigéria e Biafra. Seu mérito foi mergulhar nas águas turvas das situações específicas dos países envolvidos no redemoinho dessa época e tornar isso interessante para o leitor dos nossos dias. Há que se considerar que alguém que teve sua vida próxima desses eventos está hoje com uma idade acima dos 50 anos. Embora não tenha conseguido fazer uma uma obra definitiva sobre o período, Kurlansky chegou perto de uma versão satisfatória ao mapear e fazer um emocionado relato que consegue nos transportar para o meio dos conflitos, sem ser nostálgico.
Por essas e outras, seu livro se constitui num ótimo roteiro para tentar entender esse ano que se transformou num mito da rebeldia juvenil. Considere-se que a tarefa não foi nada fácil. Mas, com muita coragem, humor e pretensão, enfrentou o desafio de narrar um movimento que ousou não silenciar, diante dos erros do mundo. Acompanhou a rebelião que unia diferentes grupos de acordo com realidades de cada país onde explodia e se traduzia em alianças que se dissolviam no ar e táticas sopradas ao vento do momento. Cuja meta parecia ser o de questionar as autoridades, contestar as instituições, revolucionar a cultura e a civilização.
Kurlansky apresenta um texto ágil, que vai entrelaçando as ações desses jovens petulantes que diziam só se conhecer pela TV, como afirmou o irônico Daniel Cohn-Bendit em seu inseparável megafone. Que questionavam as verdades estabelecidas, ao mesmo tempo em que derrubavam prateleiras, ocupavam universidades, organizavam sit-ins (protestos sentados) em frente a tropas policiais ou paravam tanques com flores Uma agitação que se inspirou, entre outros, num filósofo como Herbert Marcuse, que algumas lideranças confessaram não entender e achavam até chato. O autor mostra que não foi um ano apenas conturbado e crítico em que foram assassinados Martin Luther King e Robert Kennedy, mas que inventou uma nova cultura além das palavras de ordem. O que ele não cita é o seu lado negativo ao importar um negócio da China que se chamava "autocrítica", instrumento "dialético" usado para silenciar oposições internas em movimentos subterrâneos. Micro-poderes, diria Foucault, um dos que marcharam com os jovens por Paris e que Kurlansky esqueceu. Uma Paris onde o autor observa que nunca se praticou tanto o esporte da conversação.
Enquanto isso, na Califórnia, muitos procuravam as chaves das portas da percepção "viajando", ouvindo música psicodélica ou de protesto em alto volume: Joan Baez, Joni Mitchell, Cream, Jefferson Airplane, Gratefull Dead, Jim Morrison, Country Joe and the Fish, entre outros. Jovens que no início criticaram o uso das guitarras elétricas por Bob Dylan, mas acabaram seduzidos pelas distorções desse instrumento e beijaram os céus com Jimmi Hendrix, que já tinha incendiado sua Fender no festival de Monterrey em 67, deixando o público de queixo caído. Essa talvez pode ser uma das mais graves omissões do livro.
Enquanto isso, atletas negros eram punidos por erguer o punho cerrado em homenagem aos Black Panthers, nas Olimpíadas do México, pouco tempo depois do massacre de estudantes pelas forças policiais de Díaz Ordaz. No território das artes pictóricas, criou-se espaço para o grafismo combatente dos affiches feitos com a técnica de silk screen que, com muita ironia, invadiram os muros das cidades junto com frases antológicas dos chamados grafites, tais como "Decreto um permanente estado de felicidade", "Seja realista, peça o impossível", "A imaginação no poder" ou "Virgindade dá câncer". Foi a época do mimeógrafo, com seus estênceis complicados de manusear, que produziam os panfletos que informavam o cardápio da desordem do dia. O mundo da literatura também produzia seus frutos e engajamentos: de Norman Mailer, Arthur Miller, William Burroughs ao roteirista Terry Southern. Época da famosa revista Ramparts, porta voz das interpretações da nova esquerda (New left). Peturbações também incomodaram a Feira do Livro de Frankfurt. A salinha escura do cinema de repente se acendeu e assistiu ao fenômeno do cineclubismo, não citado por Kurlansky. Por outro lado, o Festival de Cannes foi fechado pelos cineastas Godard e Truffaut, entre outros.
Vamos às teses: o autor atribui a criação do fenômeno
Fica como falha a omissão de acontecimentos de certas zonas periféricas, como a América Latina, onde, na década de 60, enquanto o mundo "curtia o seu barato", um surto de ditaduras estimuladas pelo Tio Sam se espalhava, o que levou a revolta estudantil a tomar caminhos radicais. O jornalista não fala, do mesmo modo, no misterioso projeto Camelot, que fez uma "inteligente" pesquisa de opinião onde traçava o perfil político das áreas a serem dominadas e que foi denunciado em 65 pelos próprios jornais americanos.
Um ano tão mal comportado, que criticou o personalismo, deveria receber tratamento mais iconoclasta. Talvez ver 68 dentro de um processo de "contestação" que se inicia no fim dos anos 50, quando houve a explosão teen-age, a chamada "juventude transviada" que desdenhava os mais velhos como "quadrados" e quebrava cinemas ao som do rock'n'roll. Apontar o momento em que o império americano se afirmava culturalmente, mostrando que era um aparente "Tigre de Papel", como brinca uma personagem no filme A Chinesa, de Godard. Do jeito que Kurlansky tratou esse ano, 68 parece um coquetel molotov que cai no colo do leitor. Outra crítica também se faz necessária: a carência de imagens num ano em que ela foi tão decisiva.
Dizer que 68 foi ruim porque não venceu nenhuma batalha, e as estruturas permaneceram apesar dos abalos, seria reduzir suas conquistas. Kurlansky acerta ao mostrar que alguns homens caíram logo depois, como De Gaulle, e essa voragem originou uma revolução que afetou o comportamento e a cultura das gerações que vieram surfar nas ondas futuras. Uma coisa é certa: não se pode sair por aí comparando o ativismo de 68 ao movimento atual que incendeia as periferias de Paris. A revolta dos "filhos dos banlieues" é efeito tardio da colonização que agora toma o território dos bairros do ex-colonizador ao ritmo do gangstra rap.
A rapaziada deve ter percebido que a visibilidade da mídia só viria com demonstrações violentas. Podem até usar uma velha tática: chamá-los de "escória" é bom motivo para botar mais fogo nos automóveis, que mostra que os "podres poderes da direita" esqueceram há muito tempo as lições de 68.
O Globo / Data: 12/11/2005
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