segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Para não esquecer!

Para não esquecer que a democracia não foi de graça...
 
enviado por Hélder Câmara
 
Dá que ouçamos tua voz*
José Damião de Lima Trindade**
 
"– Meu pai contou para mim; eu vou contar para meu filho.
– Quando ele morrer? Ele conta para o filho dele.
– É assim: ninguém esquece".
(Kelé Maxacali, índio da aldeia de Mikael, Minas Gerais, 1984)1 
 
O corpo de Eduardo Leite "Bacuri" foi entregue à família com os dois olhos vazados, as duas orelhas decepadas, todos os dentes quebrados ou arrancados, costelas partidas, cortes profundos, hematomas por pancadas e marcas de queimadura por brasas de cigarros em todo o corpo.
Ele foi preso em agosto de 1970, no Rio de Janeiro, por oficiais do CENIMAR – Centro de Informações da Marinha, que o interrogaram e o transferiram para o Delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS paulista, que o interrogou e o repassou para o DOI-CODI de São Paulo, que o interrogou e o devolveu ao Delegado Fleury, que, então, "plantou na imprensa", no dia 25 de outubro, a "notícia" de que esse preso conseguira fugir dois dias antes... Chegaram a mostrar ao próprio Eduardo Leite, na cela do DOPS em que estava trancado, jornais com a notícia de sua "fuga" – isto é, de sua execução preparada para breve. Dois dias mais tarde, no início da madrugada de 27 de outubro (quatro dias após a suposta "fuga"), Eduardo Leite, sob protestos desesperados e impotentes de cinqüenta presos das outras celas, foi arrastado pelos braços para fora de sua cela – não conseguia mais pôr-se em pé após mais de cem dias de tortura – e nunca foi trazido de volta. Em 8 de dezembro daquele ano, novo comunicado do DOPS à imprensa, informando que o temível fugitivo fora "localizado" pelas forças da repressão no litoral norte paulista e morrera numa troca de tiros com policiais.
Esse relato pode ser encontrado em vários livros de história sobre o período2. Eu teria imenso alívio em afirmar que esse foi o único, ou o pior, episódio de violência perpetrada pela ditadura brasileira. Não foi – nem o único, nem o pior. Dezenas de modalidades de tortura física e psicológica foram praticadas intensiva e extensivamente pelos órgãos de repressão política de todos os Estados do país contra milhares e milhares de brasileiros, chegando até ao homicídio deliberado de quase quatro centenas de presos políticos3. Foram mortes que, às vezes, eram apresentadas sob álibis descarados ("suicídio", "atropelamento acidental", "morte em tiroteio" etc.), outras vezes não passavam de execuções seguidas de ocultação dos cadáveres (os "desaparecimentos"). Os torturadores tiveram mãos livres para fazer de tudo – e fizeram de tudo. Estupraram presas4 . Torturaram bebês para obrigar seus pais a revelarem informações5 . Mataram pessoas empaladas6 . Mataram com injeção de inseticida7 . Mataram de muitos modos. A relação de horrores vai mais longe e é bem mais arrepiante do que normalmente estão dispostas a imaginar mesmo pessoas que se consideram bem informadas.
Mas seria um equívoco supor que as torturas e assassinatos foram "excessos" cometidos por "psicopatas". Ao contrário, foram métodos adotados pelo Estado brasileiro para livrar-se de seus opositores. Sua aplicação dava-se, quase sempre, no interior de quartéis do Exército ou de delegacias das polícias estaduais e federal, em horários normais de expediente dessas repartições, sob conhecimento e orientação de autoridades superiores e sob inspiração da Doutrina de Segurança Nacional, desenvolvida na Escola Superior de Guerra entre 1965 e 19688.
As equipes de tortura e de eliminação eram, quase sempre, chefiadas por oficiais das Forças Armadas ou por Delegados de Polícia. Apesar de muitas vezes manterem suas vítimas sob capuzes, quase trezentos desses criminosos fardados ou sem farda acabaram sendo identificados, tiveram seus nomes publicados. Passada a ditadura, prosseguiram normalmente em suas carreiras de funcionários públicos. A julgar pela idade que tinham na década de setenta – a maioria com menos de quarenta anos – muitos ainda devem continuar no serviço público, possivelmente no topo de suas respectivas carreiras civis ou militares. Nenhuma punição.
A grande frente que foi se formando na luta contra a ditadura não conseguiu acumular forças suficientes para exigir a punição de seus crimes. Por isso, em 28 de agosto de 1979, o general João Batista de Figueiredo, ditador-presidente de plantão na época, promulgou a Lei n. 6.683 (lei da anistia política) com as conhecidas limitações e deformações: por um lado, a lei concedeu uma anistia política apenas parcial, dela excetuando todos os que tivessem sido condenados por práticas da luta armada – ou seja, todos os que exerceram o direito de rebelião contra a violência ilegítima dos usurpadores do poder; e, por outro lado, a mesma lei estendeu a anistia aos torturadores e homicidas – isto é, premiou com impunidade perpétua os que praticaram todas as violências a favor da ditadura. Mais tarde, a Constituição de 1988 corrigiu parcialmente a distorção, ampliando a abrangência da anistia. Mas a impunidade dos torcionários da ditadura ainda continua intocada.
Contudo, apesar de limitada e deformada, a anistia de 1979 resultou, antes de mais nada, do crescimento da luta popular contra a ditadura militar. A bandeira da "anistia ampla, geral e irrestrita" havia conseguido, nos anos anteriores, unificar todas as correntes de oposição e conquistava apoio social e solidariedade internacional. Esquivando-se como podiam da repressão (e quando podiam...), sucediam-se atos públicos, abaixo-assinados, manifestos, greves de fome dos presos políticos, denúncias e mais denúncias. Então, em 1978, após anos vergados sob o peso de duríssima repressão, os trabalhadores conseguiram retornar à cena política, com as grandiosas greves operárias do ABC paulista, em afronta aberta às leis do regime militar. Isso acelerou a reorganização nacional do movimento sindical, estimulou manifestações de outros setores e deu impulso formidável à luta pela anistia.
A correlação de forças começava a se inverter. A repressão "seletiva" não funcionava mais. A partir daquele momento, só um banho de sangue de proporções monumentais conseguiria deter a expansão da luta contra a ditadura – mas os golpistas não tinham mais condições políticas para isso.
A anistia parcial de agosto de 1979 expressou exatamente esse momento crucial em que a ditadura, ainda com fôlego, foi forçada a concessões e iniciou seu período de declínio. Conseqüências imediatas da anistia: repatriação de milhares de exilados e libertação de grande parte dos presos políticos – o que, concretamente, injetou novas energias na frente de oposição à ditadura e preparou o terreno para as formidáveis mobilizações da campanha pelas Diretas Já, em 1984, que encerrariam, no início do ano seguinte, o longo ciclo – vinte e um anos! – do poder militar no Brasil
O autor é Procurador do Estado de São Paulo________
* Este artigo também foi publicado no jornal da Associação Juízes para a Democracia, v. 5, n. 18, 1999, p. 5.
** Procurador do Estado, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e Presidente da Comissão Paulista de Anistia Política.
1 Epílogo de Brasil: nunca mais, 20. ed., Petrópolis, Vozes, 1987, p. 273.
2 Ver, em especial: Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, editado pelo Governo de Pernambuco em 1995, reeditado pelo Governo paulista em 1996, p. 79-82.
3 Relações de mortos e "desaparecidos políticos" no Brasil podem ser consultadas em diversas obras, das quais destacam-se duas mais recentes: Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, editado pelo Governo de Pernambuco em 1995, reeditado pelo Governo paulista em 1996; e Nilmário Miranda, Carlos Tibúrcio, Dos filhos deste solo, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
4 Por exemplo: Madre Maurina Borges da Silveira, presa pelo DOPS em Ribeirão Preto, torturada e estuprada. O episódio suscitou indignação internacional. Em março de 1970, guerrilheiros brasileiros seqüestraram o cônsul geral do Japão em São Paulo e obrigaram a ditadura a permitir a saída do país de cinco presos políticos, dentre eles Madre Maurina – humilhada, machucada, mas viva. Acolhida pelo Vaticano, refugiou-se num convento de sua ordem religiosa no México. A Igreja Católica excomungou dois delegados do DOPS de Ribeirão Preto envolvidos: Miguel Lamano e Renato Ribeiro Soares. Relato: Arquidiocese de São Paulo, Brasil nunca mais, Petrópolis, Vozes, 20. ed., 1987, p. 97.
5 Exemplo: Isabel Gomes da Silva, de quatro meses de idade, torturada no DOI-CODI paulista com choques elétricos porque os militares e policiais que prenderam sua mãe suspeitavam que ela ocultava informações. Ver relato em Antonio Carlos Fon, Tortura: a história da repressão política no Brasil, São Paulo, Global, 6. ed., 1981, p. 39.
6 Exemplo: o jornalista Mário Alves, após oito horas de tortura pelos agentes do Exército no quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, foi morto mediante empalamento com um cassetete de madeira guarnecido de estrias de aço. Relato em Jacob Gorender, Combate nas trevas, São Paulo: Ática, 1987, p.180-181.
7 Foi o caso do operário Olavo Hansen, em São Paulo, em maio de 1970. Relato detalhado em Nilmário Miranda, Carlos Tibúrcio, Dos filhos deste solo, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 527-532.
8 Essa Doutrina, fornecedora do suporte jurídico-filosófico para a atividade de repressão política da ditadura, já estava desenvolvida antes do Ato Institucional n. 5, de 13.12.68, conforme se verifica no trabalho elaborado pela Escola Superior de Guerra publicado no segundo semestre de 1968 pela revista "Segurança e Desenvolvimento". Uma síntese dessa doutrina encontra-se em Antonio Carlos Fon, Tortura: a história da repressão política no Brasil, São Paulo: Global,
6. ed., 1981, p. 27-32.
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CARTA O BERRO. ..........repassem.

 
----- Original Message -----
From: BEATRICE13
 

Para não esquecer que a democracia não foi de graça...

Crônica de uma morte anunciada:
o assassinato de Bacuri

"Prepare o seu coração pras as coisas que eu vou contar..."
(Disparada - Geraldo Vandré e Théo de Barros)

Todos os militantes de esquerda que tiveram a morte como desfecho de sua luta contra a ditadura militar têm histórias tristes e trágicas, mas a de Eduardo Collen Leite - Bacuri - talvez seja a mais violenta de todas.

Bacuri nasceu em Campo Belo, Minas Gerais, no dia 28 de agosto de 1945. Ainda criança mudou-se para São Paulo onde iniciou os estudos.

Ingressou na militância política integrando-se à Polop (Política Operária) e, em 1967, incorporou-se ao Exército servindo na 7ª Companhia de guarda e, posteriormente, no Hospital do Exército.

Em 1968 transferiu-se para a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), porém, em abril de 1969, retirou-se para fundar a Rede Democrática (REDE). Em seguida, mudou-se para a ALN (Ação Libertadora Nacional).

Como todo militante de organizações clandestinas, recebeu um codinome pelo qual seria reconhecido pelos companheiros para que, dessa forma, ninguém conhecesse sua verdadeira identidade, criando, assim, um dispositivo de segurança. Entretanto, com Eduardo, o apelido pegou e apagou todos seus nomes de guerra. Até sua morte seria conhecido apenas como Bacuri.

Todos os que conheceram Bacuri têm a mesma opinião sobre ele: "era um tipo simples, afável e bem-humorado". Bacuri era um militante total, como quase todos os integrantes dos grupos armados, para os quais estava descartada definitivamente qualquer outra opção de vida, mas, nele, havia uma coragem a toda prova, pois excluía hesitações.

A ousadia que se transformou em ódio

Bacuri era um militante determinado e corajoso. E foi personagem de uma série de episódios que o transformaram num dos homens mais odiados e perseguidos pela ditadura.

Ao lado de Denise Crispim (sua esposa) e Devanir José de Carvalho foi capaz de furar uma barreira policial quando voltavam de um treinamento com o carro repleto de armas. Após uma perseguição cinematográfica, conseguiram escapar da polícia e, assim, salvar os armamentos da organização.

Para salvar a vida de Chizuo Osava (Mário Japa - preso após um acidente automobilístico), a VPR e o campo de treinamento no Vale do Ribeira que tinha nada menos que o capitão Carlos Lamarca no comando, ajudou Ladislau Dowbor, Devanir José de Carvalho, Listz Vieira e Osvaldo Soares a seqüestrarem o cônsul japonês. Em troca do diplomata conseguiram a liberdade de Mário Japa, Damáris Lucena e seus três filhos, Madre Maurina Borges, Diógenes José de Carvalho de Oliveira e Otávio Ângelo - todos banidos para o México, salvando, assim, muitas vidas por algum tempo.

Entretanto, nenhum ato cometido por Bacuri poderia ter despertado tanto ódio entre os militares quanto a história que vem a seguir: no aparelho em que moravam Bacuri e Denise ficou hospedada por um tempo a militante Ana Bursztyn. Ana, ao cobrir um ponto acabou presa e, no 8º dia após torturas incessantes, abriu o endereço do aparelho.

O resultado disso foi a prisão de Denise, grávida de pouco tempo. À distância, Bacuri, Carlos Eugênio Paz e Ana Maria Nacinovic assistiram impunes à prisão da companheira. Temeroso pela vida da mulher e do filho, Bacuri telefonou para o comandante do II Exército deixando o seguinte recado: "Aqui é o Bacuri, guerrilheiro da ALN. O DOI-CODI acabou de prender minha mulher e vão torturá-la para me entregar. Não há necessidade disso, assistimos a sua prisão, não tem mais informações a dar. Seu comandante responde pela vida dela e do bebê e, se algo acontecer, não descansaremos enquanto não matá-lo".

De início ninguém levou a ameaça a sério, até que Carlos Eugênio telefonou novamente e propôs a troca da vida de Denise e seu bebê pela do general-comandante do II Exército, pois deixou claro que conhecia a rotina do general e não pouparia a vida do mesmo. Contrariados, os militares aceitaram o acordo, mas também juraram acabar com a vida de Bacuri.

O calvário de Bacuri

Bacuri caiu nas mãos dos militares no dia 21 de agosto de 1970, preso quando chegava em sua casa, no Rio de Janeiro, pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Foi torturado durante 109 dias em diversos centros de tortura. O sofrimento de Bacuri foi resultado da sanha dos torturadores diante das ameaças feitas quando da prisão de Denise.

Bacuri foi submetido a um intenso processo de trucidamento na tortura. Uma das testemunhas disso foi Ana Bursztyn que relatou: "Bacuri era levado e retirado. Ficava sempre sozinho numa cela ao fundo (...). [Os presos] faziam sempre protestos desesperados cada vez que ele saía, arrastando-se".

No dia 24 de outubro de 1970, o tenente da PM Chiari informa a Bacuri, recolhido na solitária do fundão do DOPS/SP, que o jornal daquele dia noticiava sua fuga ocorrida no dia anterior. Cerca de 50 presos políticos testemunharam que Bacuri jamais saíra de sua cela a não ser quando era carregado para as sessões diárias de tortura, pois já não tinha mais condições de se locomover sozinho.

No dia 27 de outubro Bacuri foi retirado de sua cela e nunca mais foi visto com vida. Posteriormente, soube-se que foi levado para o sítio particular do delegado Fleury, um temido centro clandestino de torturas. No dia 8 de dezembro, 42 dias após seu seqüestro e 109 de sua prisão, os jornais publicaram uma nota oficial divulgando a morte de Bacuri após tiroteio nas imediações de São Sebastião, litoral norte de São Paulo.

Na verdade, Bacuri foi prontamente assassinado após a divulgação do seqüestro do embaixador suíço, ocorrido no dia 07 de dezembro, pois, certamente, seu nome estaria na lista de presos políticos trocados pelo diplomata e seria impossível soltá-lo por duas razões: encontrava-se oficialmente foragido e estava completamente desfigurado e mutilado pela tortura. A solução era acabar definitivamente com sua vida.

O corpo de Bacuri foi entregue à família que pôde constatar o que o ódio é capaz de fazer: seu corpo tinha hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda parte. Além disso, tinha dentes arrancados, as orelhas decepadas e os olhos vazados.

A farsa sobre o assassinato de Bacuri incluía um laudo de exame necroscópico que afirmava que não houve tortura e ainda confirmava a versão oficial de morte em tiroteio.

O horror da visão de um corpo mutilado pelo ódio calou Denise para sempre e a levou a sair do país com a filha Eduarda, fruto de seu amor por Bacuri.

Embora não tenha conhecido a filha, Bacuri a amava imensamente. O último resquício de amor que pôde guardar nos 109 dias de seu calvário foi um sapatinho de lã da filha, encontrado no bolso de sua calça; prova de que o amor supera o ódio, mesmo em circunstâncias de dor e sofrimento.

A morte de Bacuri, de forma tão macabra, é apenas o reflexo do que a tortura fez ao Brasil. Mutilou uma nação e manchou para sempre as páginas da nossa história.

Vanessa Gonçalves da Silva é jornalista formada na Universidade Estadual de São Paulo "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp) e mestranda em História Social na Universidade de São Paulo (USP) onde realiza uma dissertação sobre o papel e a importância das mulheres na luta armada no Brasil (1964-1985).
Contato: vangoncalves@...

http://www.jornalorebate.com/colunistas2/van4.htm

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