A opinião deve ser a expressão da máxima liberdade, caso contrário somente será reflexo de castração e de censura. Nosso blog visa, sem nenhuma espécie de censura ou patrulhamento, divulgar notícias e reflexões sobre o momento atual, além de pedir incessantemente justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura militar em nosso país e lutar contra as impunidades.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Resistência
sábado, 19 de dezembro de 2009
Ruanda
O genocídio de Ruanda
Por Fernando Masini

Reprodução
Dois filmes recentes tratam da matança dos tútsis em 1994, em que mais de 800 mil pessoas foram mortas, sob o olhar indiferente do mundo
"Todos os grandes personagens viraram as costas para nossos massacres. Os boinas-azuis, os belgas, os diretores brancos, os presidentes negros, as pessoas humanitárias e os cinegrafistas internacionais, os bispos e os padres, e finalmente até Deus." A constatação é de Élie Mizinge, um dos assassinos confessos hútus que participaram do massacre em Ruanda.
O depoimento deste e de outros nove hútus que pegaram em facões e porretes a fim de exterminar a etnia tútsi está no livro "Uma temporada de facões: relatos do genocídio em Ruanda", do jornalista francês Jean Hatzfeld, lançado no Brasil em 2005. O autor teve longas conversas com os entrevistados na penitenciária de Rilima, onde todos cumprem pena pelos crimes cometidos durante o massacre.
Sete deles eram jovens amigos de colégio, encontravam-se nos cabarés de Kibungo, região pantanosa próxima à capital Kigali e trabalhavam juntos na lavoura. Impressiona a ferocidade e a franqueza dos relatos. "Primeiro, quebrei a cabeça de uma velha mamãe com uma porretada. Mas, como ela já estava deitada no chão, meio agonizante, não senti a morte em meus braços. Voltei para casa de noite sem nem pensar nisso", revela no livro um dos matadores hútus.
As atrocidades aconteceram há 12 anos -os ataques começaram nos primeiros dias de abril de 1994-, e não houve qualquer tipo de intervenção de órgãos de segurança mundial. As tropas da ONU pouco fizeram e mantiveram postura omissa quanto à possibilidade de salvamento das vítimas.
Keir Pearson, roteirista do filme "Hotel Ruanda", declara no material extra do DVD (disponível no Brasil a partir 20 de abril): "Quando comecei a pesquisar o assunto o que me espantou foi que a ONU sabia o que estava acontecendo, foi alertada, mas houve um esforço consciente do Ocidente em ignorar". No filme, uma cena simboliza bem a impotência das tropas diante da milícia extremista hútu Interahamwe, que comandou a ofensiva contra os tútsis.
Integrantes hútus, amontoados no caminhão e empunhando facões, chegam perto do hotel Mille Collines, onde o protagonista Paul Rusesabagina (Don Cheadle) abriga órfãos e tútsis ameaçados pela matança. Em frente ao portão de entrada, está o coronel Oliver (Nick Nolte) com soldados boinas-azuis da ONU. Os milicianos ficam cara a cara com o coronel e gritam palavras de ordem. Para intimidar, jogam fora do caminhão um capacete azul manchado de sangue com a inscrição "United Nation". Oliver apenas acompanha de longe a arruaça promovida por eles.
Outra tentativa de voltar os olhos ao massacre ignorado à época é o filme "Shooting dogs", do diretor escocês Michael Caton-Jones, que estreou recentemente em Londres e já tem contrato fechado com a distribuidora Imagem Filmes para ser lançado no Brasil em agosto deste ano. Assim como "Hotel Ruanda", a ação desenrola-se em um lugar real que serviu de abrigo aos acossados tútsis: a escola secundária Ecole Technique Officielle, com sede em Kigali.
O padre católico inglês Christopher (interpretado pelo ator John Hurt) e um jovem professor tentam a qualquer custo evitar as matanças na capital Kigali e proteger mais de 2.500 tútsis e hútus moderados que são perseguidos pelas milícias extremistas. Mais uma vez, é realçado o caráter de desamparo das vítimas. Quando chegam as tropas francesas à capital, a ordem é clara: só serão resgatados os estrangeiros brancos. Nas horas seguintes à partida dos soldados, a grande maioria dos abrigados da escola é brutalmente assassinada.
"Eu decidi que, mesmo com dificuldades, nós tínhamos que rodar o filme em Ruanda e filmar na Ecole Technique Officielle. E devíamos também fazer o filme com os sobreviventes do genocídio. Eles precisam contar suas histórias", disse o diretor Caton-Jones. A equipe viajou ao país e passou cinco meses até terminar as filmagens em Kigali. Muitos ruandeses participaram do projeto, como Maggie Kenyama que serviu como assistente de direção. Ela perdeu a irmã durante o massacre e até hoje procura pelo corpo.
"Shooting dogs" teve sua estréia mundial em Kigali. Mais de 1.500 pessoas, dentre elas alguns sobreviventes do genocídio e participantes da produção, foram ao estádio Amahoro, na capital de Ruanda, assistir à primeira exibição do filme. Apesar de gerar discórdias por reavivar memórias de um episódio ignominioso, o presidente ruandês, Paul Kagame, mostrou-se satisfeito. "Filme como este ficará como parte de nossa memória relacionada ao genocídio, e eu acho que a memória precisa ser guardada", disse.
Em busca de respostas
A atenção voltada ao massacre de Ruanda, mesmo que tardiamente, pretende resgatar parte da história que havia sido ignorada e também busca questionar a motivação de uma matança sem precedentes na história mundial contemporânea. Os dois filmes em questão, "Hotel Ruanda" e "Shooting dogs", não encerram o assunto nem estão a serviço de uma tese esclarecedora das ações. No entanto, cumprem o papel de tocar na ferida e açular reflexões.
No começo de "Hotel Ruanda", o operador de câmera de uma emissora de televisão, Jack Daglish, interpretado por Joaquim Phoenix, puxa conversa no bar com um jornalista renomado de Kigali, interpretado por Mothusi Magano. Ele pergunta "qual a verdadeira diferença entre um hútu e um tútsi". O jornalista responde que "segundo os colonos belgas, os tútsis são mais altos e elegantes" e, por fim, diz: "Foram os belgas que criaram essa divisão".
Na tentativa de encontrar no passado alguma resposta que possa elucidar esse conflito entre as etnias, o jornalista francês Jean Hatzfeld, autor do livro "Uma temporada de facões", alerta para a revolução popular de 1959 que resultou na independência do país em 1962. Foi uma revolta camponesa hútu que derrubou a aristocracia tútsi e aboliu a servidão. Os líderes dessa insurreição aproveitaram a situação para marginalizar a comunidade tútsi, formada por camponeses, funcionários e professores.
Sob o domínio dos hútus, os tútsis passaram a ser apontados como pérfidos e parasitas num país superpovoado. Em 1973, com o golpe do major Juvénal Habyarimana, a autonomia de administração hútu consolidou-se e gerou bastante desconforto à população tútsi. Ficou instituído o confisco de bens, o deslocamento da população, a fim de isolar o inimigo, além de ter sido aprovada uma lei de proibição de casamentos mistos entre as duas etnias.
O estopim que pareceu deflagrar definitivamente o conflito aconteceu em 6 de abril de 1994, quando o presidente hútu de Ruanda, Habyarimana, foi morto após a explosão do seu avião. Imediatamente a autoria do atentado recaiu sobre os tútsis. A matança iniciou-se na mesma noite na capital Kigali. O resultado seria um total de 800 mil pessoas entre tútsis e hútus moderados mortas em 12 semanas.
Nos depoimentos dos matadores entrevistados por Hatzfeld no livro, tende-se a pensar numa ação premeditada e anterior à morte do presidente. "Em 1991, nos jornais militares o tútsi era apontado como o inimigo natural do hútu que precisava ser eliminado definitivamente. Estava escrito em letras garrafais na primeira página. Com o tempo, o alvo foi sendo pouco a pouco difundido nas estações de rádio", disse um dos hútus que participaram da matança.
Não à toa as primeiras falas do filme "Hotel Ruanda" são ameaças veiculadas numa estação de rádio. Segundo Hatzfeld, as mensagens transmitidas por rádio tiveram papel fundamental para inflamar os ânimos dos assassinos. "Nos estúdios das rádios populares, como a Rádio Ruanda ou a Rádio Mil Colinas, os tútsis são chamados de 'baratas'. Apresentadores famosos, como Simon Bikindi e Kantano Habimana, pregam abertamente a destruição dos tútsis", escreveu o autor.
Até o fim do massacre, por volta de 14 de maio, os hútus, acostumados ao trabalho árduo nos bananais e nos cafezais, haviam trocado as atividades pela rotina de matar diariamente. Como declaram no livro de Hatzfeld, era uma tarefa mais lucrativa, que trazia fartura para dentro de casa, pois não se preocupavam mais com a seca e as colheitas perdidas e acumulavam bens com as pilhagens.
Mesmo os hútus moderados, que não compartilhavam da idéia do genocídio, sofreram ameaças por não colaborarem e alguns foram mortos. Muitos desertores tinham de pagar multas em dinheiro ou eram obrigados a matar como forma de provar sua fidelidade às autoridades policiais. É o que ocorre, em certo momento do filme "Hotel Ruanda", com o personagem Paul Rusesabagina, cuja esposa era tútsi.
Ele implora a um oficial do exército hútu para não matar sua mulher e outros vizinhos tútsis que estão jogados no chão. O militar oferece-lhe a arma e ordena: "atire neles". Paul diz que não sabe usar armas e promete retribuir com dinheiro, caso o oficial deixe os amigos em paz. "Quem hesitasse em matar, por causa de sentimentos de tristeza, tinha de disfarçar suas palavras a todo custo e não dizer nada sobre a razão de sua reticência, sob pena de ser acusado de cumplicidade", disse Pio Mutungirehe em depoimento no livro de Hatzfeld.
Por mais que o autor e jornalista francês tenha se lançado numa obsessão a fim de compreender o genocídio em Ruanda -é seu segundo livro sobre o assunto-, as respostas parecem escorregar entre seus dedos. Um dos entrevistados, Joseph-Désiré Bitero, respondeu-lhe: "A fonte de um genocídio o senhor jamais verá, está enterrada bem fundo nos rancores, sob um acúmulo de desentendimentos dos quais herdamos o último. Chegamos à idade adulta no pior momento da história de Ruanda, fomos educados na obediência absoluta, no ódio, fomos entupidos de fórmulas, somos uma geração sem sorte".
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Fernando Masini
É jornalista.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O "garoto" da ditadura.Torturador e assassino em julgamento na Argentina.
Leitura, infelizmente,
12.09
O "garoto mimado" da última Ditadura Militar argentina (1976-83), o ex-capitão Alfredo Astiz, está sendo julgado desde a sexta-feira passada por sequestros, torturas e assassinatos de civis durante o regime militar. Conhecido entre suas vítimas como "O anjo loiro da morte" – e também como "O Corvo" - Astiz está sendo acompanhado no banco dos réus por outros 18 ex-integrantes da ditadura – também acusados de crimes durante a ditadura - que operavam com ele no Grupo de Tarefas 3.3.2.
A base do grupo era a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), o maior centro clandestino de torturas do regime militar, situado no bairro portenho de Núñez.
Astiz era uma das estrelas da ESMA, já que as missões mais complexas eram encomendadas ao jovem oficial pelos integrantes da alta hierarquia militar.
As estimativas indicam que 5.000 prisioneiros civis passaram pela ESMA, dos quais sobreviveram menos de 170.
Um total de 280 testemunhas comparecerão perante o tribunal, incluindo vários sobreviventes da ESMA. Fontes dos tribunais indicaram que o julgamento de Astiz e seus companheiros poderia prolongar-se por um período de seis meses a um ano.
No primeiro dia de julgamento oral e público Astiz provocou o público levantando um livro que levava consigo. O título: "Voltar a matar".
Entre os outros ex-militares que também estão sendo julgados estão Alfredo Donda Tigel - que sequestrou seu próprio irmão e a cunhada, os assassinou e ficou com suas filhas - além Jorge "El Tigre" Acosta, famoso por estuprar as prisioneiras.
Astiz é considerado o ex-integrante da ditadura com o perfil psicológico mais intrincado. "Ele tinha absoluta certeza que estava destinado a grandes missões em sua vida...ele achava que era um cavaleiro nas Cruzadas!", disse ao Estado Miriam Lewin, uma das sobreviventes da ESMA, ex-prisioneira de Astiz e autora do livro "Esse inferno", sobre a passagem de várias prisioneiras mulheres nesse centro de torturas.
Outra sobrevivente, Sara Osatinsky relatou que o centro da vida do loiro oficial era a ESMA: "em uma ocasião Astiz saiu de férias, mas voltou quatro dias depois, pois havia descoberto que não podia compartilhar suas atividades com os amigos. Por isso passou o resto de suas férias na ESMA, conosco".
Astiz apreciava reunir os prisioneiros para que estes ouvissem suas longas dissertações nas quais argumentava que os africanos eram "racialmente inferiores".
Diversas testemunhas indicam que, enquanto outros repressores somente ficavam na ESMA o tempo suficiente para o "trabalho", Astiz desfrutava do cheiro de urina e fezes que emanava das celas, além dos gritos dos torturados.
Protegido pela cúpula militar, Astiz foi recompensado por seus serviços durante o período mais intenso de repressão com o cargo de governador das ilhas Geórgias durante a Guerra das Malvinas, em 1982. No entanto, essas ilhas foram o primeiro ponto recuperado pelos britânicos durante o conflito bélico.
Após um único tiro de bazuca disparado pelos britânicos, Astiz desistiu de resistir. Com com um copo cheio de whisky em uma das mãos, assinou a rendição incondicional.
Astiz rende-se rapidamente aos britânicos durante a Guerra das Malvinas
Astiz foi beneficiado em 1986 e 1987 com as leis de perdão aos militares (leis de ponto final e de obediência devida). Solteiro, ao longo dos anos 90 era visto com frequência em discotecas. Mas, por ser reconhecido facilmente, Astiz também foi alvo de freqüentes socos e cusparadas dos jovens que dançavam nesses lugares.
Em 1998 Astiz concedeu sua primeira e última entrevista à imprensa, gerando intensa polêmica. Em declarações à revista "Trespuntos", o ex-capitão definiu-se como "o melhor homem para matar um presidente".
FREIRAS E GARGALHADA
Astiz foi responsável pelo assassinato de três fundadoras das Mães da Praça de Mayo, entre elas, Azucena Villaflor. Ele também é requerido por vários tribunais na Europa. Na Itália, ele foi acusado de ter sido o autor do desaparecimento de três cidadãos italianos em território argentino durante o regime militar.Em 1990 a Justiça francesa condenou o ex-capitão - à revelia - à prisão perpétua pela morte das freiras francesas Alice Domon e Leonie Duquet.
As duas freiras foram sequestradas em uma operação planejada por Astiz, que com suas suas feições de "menino bem-comportado" infiltrou-se na organização de defesa dos Direitos Humanos das Mães da Praça de Maio, fazendo-se passar pelo irmão de um desaparecido. A cara ingênua de Astiz convenceu as Mães, que somente perceberam quem ele era tempos depois. Sob este disfarce, Astiz recolheu informações e decidiu que as duas religiosas idosas deveriam ser eliminadas.
Astiz também é procurado pela Justiça da Suécia, já que durante uma operação para sequestrar militantes de esquerda, ele e seu grupo entraram na casa de uma estudante na Grande Buenos Aires. Ali estava Dagmar Hagelin, uma jovem sueca, amiga da estudante procurada pelos militares. A adolescente fugiu dos repressores e foi derrubada com um tiro certeiro de Astiz na nuca. O oficial, ao comprovar sua pontaria – segundo testemunhas - soltou uma gargalhada.
Pátio da Esma, com a presença de cadetes e oficiais, nos anos 70
ESMA FOI O MAIOR CENTRO DE TORTURAS DA AMÉRICA DO SUL
Dos 651 campos de concentração da Ditadura, a ESMA tornou-se o mais emblemático. Dentro da cidade de Buenos Aires, a poucos quarteirões do estádio Monumental de Núñez, foi o cenário das torturas mais cruéis do regime militar.
A ESMA, segundo o jornalista e analista político Eduardo Aliverti, era "um clube de perversão".
Enquanto que nos outros campos de concentração os militares recorriam a métodos "clássicos" como o fuzilamento, na ESMA os oficiais da Marinha, "eliminavam" os prisioneiros por meio dos "vôos da morte". Esta era a denominação da modalidade de jogar os prisioneiros dos aviões em pleno voô sobre o rio da Prata ou o Oceano Atlântico.
A ESMA também contava com um armazém onde eram acumulados os objetos saqueados dos prisioneiros e suas famílias. Roupas, sapatos, eletrodomésticos, quadros e antiguidades eram alguns dos frutos do saque realizado pelos militares da ESMA.
A Marinha também organizou uma imobiliária clandestina que vendia as casas e apartamentos dos "desaparecidos". O dinheiro era embolsado pelos oficiais.
"Viva Hitler", "Nós somos deuses" eram algumas das frases que os oficiais haviam pintado nas paredes das salas de tortura, onde também violentavam as prisioneiras que minutos depois levavam – ainda em estado de choque e sangrando – para jantar em uma churrascaria de luxo em pleno centro portenho.
A jornalista Miriam Lewin, uma das sobreviventes da ESMA, relatou ao Estado o modus operandi dos militares: "eles tinham métodos muito refinados. Vários prisioneiros viram como torturavam seus bebês, na sua frente, ameaçando esmagar a cabeça das crianças".
Assinatura, em uma viga de uma das celas da Esma, do prisioneiro Horacio Maggio, posteriormente assassinado
Espalhados em 17 hectares, os diversos edifícios da ESMA que compõem o antigo centro de torturas possuem nomes que indicam o humor negro dos oficiais: "Avenida da Felicidade", "Eldorado", "O Capuz" e "O Pequeno Capuz" (estes dois últimos, em alusão aos capuzes que os militares colocavam sobre a cabeça dos prisioneiros, que freqüentemente ficavam semanas ou meses sem ver a luz do dia).
A Escola de Mecânica da Armada está a poucos quarteirões do estádio Monumental, do time River Plate.
Durante a Copa do Mundo de 1978, os prisioneiros podiam escutar desde suas celas as torcidas no estádio gritando "gol".
Nos dias de jogo os oficiais detinham as sessões de tortura para dedicar-se a ver pela TV os embates futebolísticos. Quando os jogos concluíam, dedicavam-se novamente a aplicar choques elétricos ou arrancar as unhas dos prisioneiros.
ESQUIZOFRENIA
"O comportamento desses militares era uma coisa esquizofrênica", disse ao Estado Graciela Daleo, uma ex-prisioneira que no dia em que a Argentina venceu a Copa, foi levada pelos oficiais para um "passeio" de celebração pelas avenidas da cidade.
Daleo, que havia sido torturada com requintes de crueldade, olhava a multidão dançando pelas ruas. "Eu olhava pela janela do carro, rodeadas de oficiais da Marinha, e pensava que se começasse a gritar às pessoas na rua que eu era uma prisioneira política, ninguém daria bola para mim". Após o passeio, Daleo foi levada novamente à cela.
Grande parte dos prisioneiros ficavam encapuçados até seis meses ininterruptos. Esta era uma forma dos carcereiros eliminarem qualquer noção de tempo e espaço dos detidos.
Quase todos, antes de serem torturados recebiam uma refeição de boa qualidade. Essa a "última ceia", servida pelos oficiais com um sorriso de sarcasmo. Depois, eram levados pela "Avenida da Felicidade", tal como denominavam o corredor que conectava os alojamentos dos prisioneiros com as salas de torturas.
Logo, a longa seqüência de padecimentos começava com choques elétricos sobre um colchão. As fortes descargas causavam pequenos "apagões" no resto das instalações da Esma. Para que a condução elétrica fosse melhor, os oficiais de Massera molhavam os corpos dos torturados.
Nos pavilhões onde amontoavam-se os prisoneiros, havia uma mistura de alívio e desespero. "Você implorava que o companheiro fosse deixado em paz...mas, ao mesmo tempo, sabia que quando isso acontecesse, você era o seguinte", explica Victor Basterra, um dos sobreviventes.
Parte da frente da Esma, atualmente
AMPLO LEQUE DE TORTURAS
Depois dos choques, os prisioneiros eram as vítimas do "submarino úmido", que consistia em colocar suas cabeças em baldes d'água cheios de urina, fezes e outros dejetos. Os oficiais também aplicavam o "submarino seco", ou seja, a asfixia com uma bolsa de plástico.
Uma das mais temidas era o "saca-rolhas", que consistia na introdução de um aparelho pela via anal, que ao ser puxado para fora, arrastava junto as vísceras.
Algumas torturas eram inesperadas. Os homens de Massera dedicavam várias horas para imaginar novas formas de atormentar os prisioneiros. Uma manhã, os detidos ficaram perplexos ao ver que os oficiais levavam uma motocicleta até o porão onde estavam. Nas horas seguintes, os militares, montados na moto, divertiram-se circulando pelo salão passando por cima dos prisioneiros, deitados no chão a modo de paralelepípedos.
Teresa, uma das prisioneiras que morreu na Esma e cujo sobrenome é desconhecido, era violada cada vez que ia ao banheiro. "Se ela ia uma vez, a estupravam nessa ocasião. Mas, se, horas depois, ia de novo, era novamente violada. Todas as vezes que ia ao banheiro, era impreterivelmente estuprada. Todas", relata Enrique Fuckman, ex-detido das masmorras da Esma.
Dagmar Hagelin, a adolescente estudante sueca vítima de Astiz
'ASTIZ DAVA UM PRESENTE DE ANIVERSÁRIO PARA UM PRISIONEIRO.
"O Verdugo – Astiz, um soldado do terrorismo de Estado" é a mais recente biografia não-autorizada de Alfredo Astiz. Seu autor, o jornalista Jorge Camarasa, famoso nos anos 90 por seus livros sobre nazista na Argentina, em entrevista ao Estado, conversou sobre a intrincada personalidade de Astiz, a quem define de "sinistro paradigma do terrorismo de Estado".
Estado: Como definiria a relação de Astiz com suas vítimas e seu trabalho?
Camarasa: Astiz possuía uma série de patologias. Ele costumava recordar os aniversários de alguns prisioneiros, aos quais levava presentes na ESMA! Era uma relação de amor-ódio muito complexa. Astiz era capaz de realizar coisas estranhas como levar um prisioneiro a um restaurante, e depois transportá-lo para o lugar onde seria torturado...
Estado: Astiz pertence aquele grupo de ex-torturadores e ex-sequestradores que consideram que seus atos durante a ditadura foram uma 'missão divina'? Ou o enquadraria como um 'aproveitador' das circunstâncias?
Camarasa: Era um aproveitador. Ele limitava-se a cumprir as ordens que recebia, sem jamais questionar se elas estavam bem ou mal. Se o patrão de Astiz tivesse sido outro governo, outro regime, com certeza ele teria agido da mesma forma.
Estado: Astiz foi um garoto mimado da ditadura? O almirante Massera o encarregou de realizar complexas tarefas de espionagem, apesar de ser muito jovem...o ditador e general Leopoldo Galtieri, durante a Guerra das Malvinas, o colocou como comandante das ilhas Geórgias do Sul....
Camarasa: Foi mais do que um garoto mimado. Isso tem a ver com a formação de Astiz. Ele foi um oficial treinado nos Estados Unidos, além da Escola das Américas. Era um cara com instrução militar acima de seu camaradas.
Estado: Qual foi o destino de Dagmar Hagelin?
Camarasa: Sabemos detalhes da operação na qual Dagmar foi pega. Mas não sabemos se morreu na hora, se foi levada viva e posteriormente torturada. E depois morta.
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terça-feira, 15 de dezembro de 2009
A luta dos juristas pela democracia no Brasil
A luta dos juristas pela democracia no Brasil
Indiscutível o papel que os juristas sempre tiveram como mola propulsora de transformações sociais, na luta por valores essenciais a todos os seres humanos como a Justiça e a Liberdade.
Apenas a título de exemplo, se voltarmos os olhos para a Revolução Francesa, encontraremos entre os seus principais líderes os advogados Danton e Robespierre. Na Conjuração Mineira, ao lado do militar Tiradentes, figuravam o jurista, desembargador e procurador da Coroa Cláudio Manuel da Costa ou o magistrado Tomás Antonio Gonzaga.
Na luta contra o Estado Novo, além da ferrenha resistência dos estudantes do Largo de São Francisco, destacaram-se juristas de Minas Gerais, que se notabilizaram por escrever importante documento contra a tirania, que ficou conhecido como "Manifesto dos Mineiros", lançado em 1943 e que representou um marco na derrocada da ditadura Vargas.
Contra o regime militar implantado em 1964, novamente estavam os juristas irmanados, sob as Arcadas, para celebrar a leitura da "Carta aos Brasileiros", escrita pelo professor Goffredo da Silva Telles Jr. e subscrita por centenas de pessoas, a grande maioria juristas (foto). Estes, afinal, também se reuniam para bradar por democracia e pela volta do Estado Democrático de Direito nas entidades de classe, com destaque para a Ordem dos Advogados do Brasil.
A COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DE SÃO PAULO
A resistência pacífica à ditadura militar, que assolou o País de 1964 a 1985, deu-se em variadas frentes. Nas salas de aula, nas tribunas da imprensa e nas barras dos tribunais, democratas lutavam, como podiam, arriscando a própria vida. É certo que os combatentes foram muitos, milhares, muitos e muitos milhares, espalhados pelo Brasil afora, organizados em associações, sindicatos e em diversas outras organizações não-governamentais, ou mesmo nos partidos, legais ou clandestinos.
Na linha de frente da resistência democrática, destacaram-se as Comissões Justiça e Paz nacional e nos estados. Entre elas, com relevante atuação, sobressaiu-se a Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJP-SP).
Concebida, em 1972, por Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo da Cúria Metropolitana de São Paulo, desde logo a CJP-SP ancorou-se no destemor e na disposição de lutas dos juristas. O primeiro presidente da entidade foi Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Sucederam-no outros luminares do Direito pátrio, entre os quais José Carlos Dias (advogado criminalista e ex-ministro da Justiça), José Gregori (ex-ministro da Justiça e atual secretário municipal de Direitos Humanos da cidade de São Paulo), Antonio Carlos Malheiros (desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo) e Marco Antônio Barbosa (advogado).
Frutuosa foi a atuação da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Em pleno Governo Médici, quando a tortura contra presos políticos tornou-se prática generalizada, envolvendo agentes militares e paramilitares, além de policiais civis, a CJP-SP constituiu-se em pólo de ação jurídica e política. Defendendo os presos políticos e denunciando as arbitrariedades do regime com eco no exterior , os juristas da Justiça e Paz, ao lado de outros cidadãos (professores, sociólogos etc.), cerravam fileiras, também acolhendo refugiados políticos de ditaduras congêneres à brasileira em outros países da América do Sul.
As lutas da CJP-SP foram se ampliando, ancoradas no alargamento da noção de direitos humanos direito à vida, à saúde, à educação etc. Com o fim da ditadura, a Comissão continuou ativa, denunciando as arbitrariedades cometidas por autoridades constituídas contra os despossuídos, na luta pela posse da terra, no direito à moradia, contra a violência no sistema prisional, entre tantas outras frentes de batalha. E, nos últimos anos, a CJP-SP tem se notabilizado por sua atuação em prol da educação em direitos humanos, para que os currículos escolares nos variados níveis da educação contemplem noções fundamentais de interesse de todos os cidadãos. E para que o aprendizado vire, enfim, prática cotidiana de um país mais justo e fraterno.
História em livro
A rica trajetória da Comissão Justiça e Paz de São Paulo tem sido objeto de algumas teses e publicações de uns anos para cá. Em 15 de novembro passado, por ocasião da comemoração dos 120 anos da Proclamação da República, foi lançado o livro Fé na Luta A Comissão Justiça e Paz de São Paulo, da ditadura à democratização, de Maria Victoria Benevides (Editora Lettera.doc), possivelmente a mais completa obra a traçar o itinerário histórico da CJP-SP.
Em 424 páginas, incluindo fotos históricas e uma detalhada cronologia sobre fatos políticos, culturais, sociais e econômicos das últimas décadas, a obra é fruto de ampla pesquisa coordenada pela socióloga e professora titular de Educação da USP, Maria Victoria Benevides, que também é diretora da Escola de Governo, além de militante histórica dos direitos humanos e da própria Comissão.
Como afirma o professor Antonio Candido, em texto inserido na contracapa do livro, "Maria Victoria Benevides é qualificada de maneira especial para contar a história da benemérita Comissão Justiça e Paz de São Paulo, que, sob a inspiração do grande brasileiro e grande pastor que é Dom Paulo Evaristo Arns, foi um reduto na defesa dos direitos humanos em período terrível da nossa história e continua atuando na luta por eles. Além de participar intimamente dos trabalhos da Comissão e, portanto, de conhecê-la por dentro, Maria Victoria tem o equipamento intelectual e afetivo adequado para expor e avaliar o seu papel, o que pressupõe a capacidade de análise social pertinente, mas também a vibração ante o sofrimento dos que têm a sua humanidade lesada. Como cidadã, professora, militante, estudiosa de visada ampla, ela possui a envergadura necessária para narrar o que tem sido uma instituição que é das mais nobres e eficientes em nosso país". O prefácio da obra é assinado pelo Ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e as orelhas estão a cargo do jornalista Eugênio Bucci (bacharel em Direito pela USP, que foi presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1984).
A Consultor Jurídico é uma revista eletrônica especializada em informação do Direito e da Justiça, produzida pela Dublê Editorial e Jornalística Ltda.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Livro resgata histórias de crianças presas com os pais durante a ditadura
Livro resgata histórias de crianças presas com os pais durante a ditadura
Autor(es): FERNANDA ODILLA |
Folha de S. Paulo - 08/12/2009 |
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA André, 3, e Priscila, 2, foram parar atrás das grades com a mãe no dia da promulgação do AI-5, sigla que entrou para a história como o ato institucional que escancarou a ditadura no Brasil, em 13 de dezembro de 1968. |
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Ditadura: Estado e União tem 72 horas para se manifestarem sobre ossadas sem identificação
Ministério Público Federal - Procuradoria Geral da República
Ditadura: Estado e União tem 72 horas para se manifestarem sobre ossadas sem identificação
2/12/2009 17h56A ação que pede a responsabilização de autoridades civis do período também foi aberta pela Justiça Federal, que mandou citar os réus Tuma, Maluf, Shibata, Colasuonno e Bueno
A Justiça Federal recebeu a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, na última quinta-feira, 26 de novembro, visando a responsabilização civil da União, do Estado de São Paulo, de três universidades e de mais seis pessoas pela demora indevida na identificação dos restos mortais de militantes políticos mortos pela ditadura militar e enterrados no cemitério de Perus (na zona norte de São Paulo).
No último dia 30, o juiz João Batista Gonçalves, da 6ª Vara Federal Cível de São Paulo, deu prazo de 72 horas para que a União e o Estado de São Paulo se manifestem sobre o caso. Somente após o posicionamento do Poder Executivo, a Justiça decidirá sobre os pedidos liminares da ação do MPF.
Na ação, além da responsabilização de legistas e peritos, o MPF pede liminar para que a União reestruture, em 60 dias, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e a dote de orçamento, pessoal e de um Núcleo de Pesquisas e Diligências e um laboratório para se responsabilizar pelo Banco de DNA de familiares, iniciado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, e que contrate, em até 90 dias, um laboratório especializado na realização de exames de DNA em ossos.
Já quanto ao Estado de São Paulo, o MPF pediu liminar que o obrigue a, no prazo de 60 dias, constituir uma equipe de profissionais do Instituto Médico Legal para atuar com exclusividade no exame das ossadas oriundas da vala comum de Perus e atualmente depositadas no columbário do Cemitério do Araçá.
Aberto o columbário, o MPF pede que a União e o Estado sejam obrigados a examinar, em seis meses, as ossadas que estão no Araçá e descartem aquelas que sejam flagrantemente incompatíveis com casos de desaparecidos e extraia DNA das ossadas selecionadas.
Ação Civil Pública nº 2009.61.00.025169-4.
Ocultação A ação que visa a declaração de responsabilidades pessoais de autoridades e agentes públicos civis e da União, Estado e Município de São Paulo por ocultações de cadáveres de opositores da ditadura militar (1964-1985), ocorridas na capital, nos cemitérios de Perus e Vila Formosa, também foi recepcionada pela Justiça Federal.
A juíza Tânia Lika Takeuchi, da 4ª Vara Federal Cível, determinou a citação dos réus Romeu Tuma, atualmente senador por São Paulo, que foi chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Dops, entre 1966 e 1983; do médico legista Harry Shibata, ex-chefe do necrotério do Instituto Médico Legal de São Paulo; dos ex-prefeitos de São Paulo, Paulo Maluf (gestão 1969-1971), atualmente deputado federal e Miguel Colasuonno (gestão 1973-1975); e de Fábio Pereira Bueno, diretor do Serviço Funerário Municipal entre 1970 e 1974, para que todos apresentem suas defesas dentro do prazo legal.
A juíza também determinou que União, Estado e Município de São Paulo, também demandados na ação, se manifestem.
A ação do MPF pede que os cinco sejam condenados à perda de suas funções públicas e/ou aposentadorias ao final do processo. Caso sentenciados, os mandatos atuais de Tuma e Maluf não seriam afetados, pois a Constituição impede a perda de mandato em ações civis públicas.
Além da cassação das aposentadorias, o MPF pede que as pessoas físicas sejam condenadas a reparar danos morais coletivos, mediante indenização de, no mínimo, 10% do patrimônio pessoal de cada um, revertidos em medidas de memória sobre as violações aos direitos humanos ocorridos na ditadura.
O MPF sugere na ação civil pública a possibilidade de o juiz diminuir eventual pena em dinheiro se os réus, antes da sentença, declararem publicamente, em depoimento escrito e audiovisual, os fatos que souberem ou de que participaram durante a repressão política no período de 1964 a 1985, mas que ainda não sejam de domínio público.
Ação nº 2009.61.00.025168-2.
Fiel Filho Na última sexta-feira, o MPF tomou ciência de decisão da juíza Gisele Bueno da Cruz, da 11ª Vara Federal Cível, que recebeu ação civil pública contra sete ex-agentes do
Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2º Exército, visando responsabilizá-los pela morte do operário Manoel Fiel Filho, em 17 de janeiro de 1976. Ela adiou a análise de um pedido liminar para depois da chegada das contestações.
O MPF ajuizou a ação em março deste ano, mas ela havia sido rejeitada sem a análise do mérito pela juíza Regilena Emy Fukui Bolognesi, entretanto a procuradoria recorreu da decisão e a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região determinou que não era caso de arquivamento.
Na nova decisão da 11ª Vara foi determinada a citação dos réus e solicitada a manifestação da União e do Estado de São Paulo. "Após a juntada de todas as contestações, retornem os autos para apreciação do pedido liminar", assinalou a juíza.
Na liminar, o MPF pede o afastamento do perito criminal Ernesto Eleutério, que até hoje exerce atividades no Instituto de Criminalística.
Ação nº 2009.61.00.005503-0.
Nas três ações, o MPF pede que a União e o Estado e o Município de São Paulo, este último apenas no caso da ação de ocultação de cadáver, decidam qual posicionamento tomar diante das ações, se junto com o MPF ou em defesa dos réus.
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